20 novembro, 2008

Assim rasteja a humanidade (a crise dos alimentos)


Por Renato Prata Biar

A crise dos alimentos que se alastra pelo mundo vem suscitando diversas explicações: o aumento da demanda puxado pela China e Índia, a concorrência na produção dos biocombustíveis que estão tomando o lugar das plantações de produtos alimentícios, más colheitas devido ao aquecimento global, etc. Todas têm o seu quinhão de verdade, mas o grande motivo de toda essa crise parece que está passando despercebido: o domínio exercido pelas grandes corporações (Monsanto, Cargill, Halliburton, Bunge, Vale, dentre tantas outras) nas áreas de commmodities (carne, milho, soja, petróleo, ferro, estanho, cana-de-açúcar, etc.). Essas corporações estão exercendo um monopólio sobre essas áreas de alimentos e matérias primas de uma forma absolutamente irresponsável e selvagem. Com o advento da era neoliberal, essas empresas ficaram com o caminho livre para explorar a produção de bens e serviços sem a ?incomoda? intervenção do Estado para lhes impor alguns limites e regras.

Entretanto como houve, e ainda há uma crise no setor de ativos financeiros de proporção mundial, puxado pela crise do setor imobiliário estadunidense, grande parte do capital volátil e especulativo que paira pelo mundo em busca de remuneração, teve que ser desviado do setor financeiro; já que esse não tem mais as mesmas garantias e o mesmo grau de confiança dos investidores. Ou seja, existe uma grande massa de capital acumulado que precisa ser investido e, conseqüentemente, remunerado, em busca de novas oportunidades e investimentos. Como estamos vivendo num mundo onde ?apenas? um sexto de toda a população passa fome (cerca de um bilhão de pessoas), nada mais rentável e lucrativo do que investir em algo que ninguém poderá deixar de consumir enquanto tiver condições: os alimentos e outros produtos imprescindíveis para a sua produção. É um negócio que, como nenhum outro, já tem garantida uma demanda dos cinco bilhões de pessoas restantes que ainda não estão na condição de miseráveis. Uma prova de que o negócio é realmente rentável e promissor vem do mega-especulador George Soros, que tem investido pesado na compra de terras aqui na América Latina, principalmente no Brasil e na Argentina, deixando um pouco de lado seus investimentos voláteis.

O projeto neoliberal e hegemônico segue, portanto, o seu rumo e coloca na mão-invisível do mercado e suas corporações o controle da produção mundial de alimentos. Com isso, são seus donos e responsáveis que estão decidindo o que deve e o que não deve ser plantado, usando como fio condutor de suas decisões as margens de lucros que poderão ser auferidas com cada produto. Apenas para se ter uma idéia, entre 31 de dezembro de 2004 e 31 de março de 2008, os preços dos grãos e sementes deram um salto de 163% de aumento, atraindo ainda mais a ganância dos abutres, ou melhor, dos especuladores e transformando a fome no novo grande negócio do momento. Em vários países como as Filipinas, Afeganistão, Senegal, México e Haiti, multidões já estão saindo às ruas para protestar contra essa alta de preços dos produtos básicos e essenciais.

Enquanto isso, o Brasil comemora sua entrada no hall dos países seguros para investimentos estrangeiros como anunciou, na semana passada, a agência Standart & Poors. A pergunta é: o que a maior parte da população ganha com isso? Resposta: nada. Apenas mais miséria. Outro bom exemplo latino americano para entendermos como o sistema capitalista é justo e o quanto é importante o tão almejado crescimento econômico, é o Peru. Este país é o primeiro produtor de ouro, prata, zinco e estanho da América Latina e, seguindo o exemplo do Brasil, está muito próximo de ganhar o título de país com grau seguro para investimentos estrangeiros. Mas apesar de toda essa dedicação e esforço para agradar o Mercado, e também de toda a sua riqueza natural, o Peru tem 42% da sua população vivendo na miséria. Huancavelica, por exemplo, que é considerada uma área rica em cobre, ouro, zinco e prata é, de forma extraordinariamente paradoxal, a região mais pobre do Peru. O índice de pobreza desse lugar alcança a inacreditável taxa de 88,7% de sua população.

Destarte, fica fácil compreender o porquê da grande preocupação de Keynes em manter protegida e incólume a ideologia capitalista, no que diz respeito aos seus meios e objetivos reais na corrida pela acumulação e concentração da riqueza. Dizia ele no seu ensaio sobre inflação e deflação:

"Nenhum homem de espírito consentirá em permanecer pobre , se acreditar que os seus chefes conquistaram seus bens jogando com a fortuna. Converter o empresário em especulador é golpear o capitalismo, porque isso destrói o equilíbrio psicológico que permite a perpetuação de recompensas desiguais. A doutrina econômica dos lucros normais, vagamente apreendida por cada um, é uma condição necessária para a justificação do capitalismo. O capitalista só é tolerável enquanto se pode aceitar que seus ganhos guardam alguma relação com aquilo que, grosseiramente e em qualquer sentido, suas atividades trouxerem como contribuição para a sociedade."

Portanto, manter a população na miséria é a melhor, mais lucrativa e mais segura maneira de manter o status quo. Pois aquele que precisa lutar a cada dia pela sua sobrevivência está condenado a servir a esse estado de coisas, sem nunca conseguir ter condição alguma de refletir sobre sua realidade e, muito menos, de lutar por uma mudança significativa da ordem vigente.

Assim rasteja a humanidade.