03 maio, 2007

A Miséria do Meio Estudantil (adaptado)

Pode-se dizer, sem grandes riscos de errar, que o estudante da UFSC é, depois do ufscão e do funcionário terceirizado, o ser mais universalmente desprezado. Os motivos por que ele é desprezado são, com freqüência, falsos motivos produzidos pela ideologia dominante. Já os motivos por que ele é efetivamente desprezível e desprezado do ponto de vista crítico são recalcados e dissimulados. No entanto, os partidários da falsa oposição sabem reconhecê-los, e reconhecer-se neles. Por isso, eles invertem esse desprezo real transformando-o numa admiração complacente. Assim, as organizações burocráticas decadentes (das stalinistas JA e UNE à anacrônica e formalista ordem DeMolay, passando pelo cooptador Partido Sectário Trotskista Utópico – PSTU) travam enciumadas batalhas pelo apoio “moral e material” dos estudantes.

Iremos mostrar as razões de tal interesse pelos estudantes e como elas participam positivamente da realidade dominante da sociedade, reproduzindo-a. O estudante desempenha um papel provisório, que o prepara para o papel definitivo que irá assumir, como elemento positivo e conservador, dentro do funcionamento do sistema capitalista. É apenas uma iniciação, e nada mais que isso.

Essa iniciação reencontra, magicamente, todas as características da iniciação mítica. Ela permanece inteiramente desconectada da realidade histórica, individual e social. O estudante é um ser dividido entre o status atual e o status futuro – nitidamente distintos –, cuja fronteira será cruzada de forma mecânica. Sua consciência esquizofrênica lhe dá condições de isolar-se numa “sociedade de iniciação”, ignorando seu futuro e encantando-se pela unidade mística que lhe é oferecida por um presente ao abrigo da história.

Numa época em que uma parcela crescente da juventude está se liberando cada vez mais dos preconceitos morais e da autoridade familiar para, cada vez mais depressa, fazer parte do mercado, o estudante se mantém, em todos os níveis, numa “menoridade prolongada”, irresponsável e dócil. Se a crise juvenil tardia o coloca de alguma forma em conflito com sua família, ele aceita sem problemas ser tratado como uma criança nas diversas instituições que regem a sua vida cotidiana. Quando não estão a cagar-lhe na cara, estão a mijar-lhe no rabo.

A colonização dos diversos setores da prática social encontra sempre no mundo estudantil sua mais gritante expressão. A transferência para os estudantes de toda má consciência social mascara a miséria e a servidão de todos.

Mas as razões que fundamentam o nosso desprezo pelo estudante são de outra ordem. Elas não se referem apenas à sua miséria real, mas também à sua complacência com relação a todas as misérias, sua propensão doentia a consumir alienação beatamente, nutrindo a esperança, face à falta de interesse geral, de chamar a atenção para a sua miséria particular. As exigências do capitalismo moderno fazem com que a maioria dos estudantes acabem conseguindo ser apenas pequenos funcionários, quando conseguem sê-lo. Diante do tão previsível caráter miserável desse futuro mais ou menos próximo que irá “indenizá-lo” pela vergonhosa miséria do presente, o estudante prefere voltar-se para o presente e orná-lo com prestígios ilusórios. A própria compensação é lamentável demais para que alguém se prenda a ela. Os amanhãs não cantarão, e ele fatalmente banhar-se-á na mediocridade. Eis porque ele se refugia num presente vivido de modo irreal.

Escravo estóico, o estudante acredita que quanto mais numerosas forem as cadeias de autoridade que o prendem, mais livre ele será. Como sua nova família, a universidade, ele se julga o mais “autônomo” ser social, sem se perceber atado, direta e conjuntamente, aos dois mais potentes sistemas de autoridade social: a família e o Estado. Ele é o filho bem agradecido e comportado de ambos. O que eram ilusões impostas aos empregados tornam-se ideologia interiorizada e veiculada pela massa dos futuros pequenos funcionários.

Se a miséria social antiga gerou os mais grandiosos sistemas de compensação da história – as religiões –, a miséria marginal estudantil só encontrou consolo nas mais desgastadas imagens da sociedade dominante, na repetição burlesca de todos os seus produtos alienados.

Recolhendo um pouco do prestígio em frangalhos da universidade, o estudante ainda se sente feliz por ser estudante. Tarde demais. O ensino mecânico e especializado que lhe é ministrado já se encontra tão profundamente degradado (em relação ao antigo nível da cultura geral burguesa) quanto seu próprio nível intelectual no momento em que ele tem acesso a esse ensino. Pela simples razão que a realidade que domina tudo isso, o sistema econômico, exige a fabricação maciça de estudantes incultos e incapazes de pensar. Que a universidade tenha se tornado uma organização – institucional – da ignorância, que a própria “alta cultura” se dissolva ao ritmo da produção em série dos professores, que todos esses professores sejam cretinos e que em sua maioria provocariam risos em qualquer público de liceu – isso o estudante ignora. E continua a ouvir respeitosamente seus mestres, com a vontade consciente de perder qualquer espírito crítico de modo a melhor comungar da ilusão mística de ter se tornado um “estudante”, alguém que está tratando seriamente de aprender um conhecimento sério, na esperança de que irá realmente receber o conhecimento das “derradeiras verdades”. Trata-se de uma menopausa do espírito. Tudo aquilo que hoje acontece nas salas das escolas e faculdades será, na futura sociedade revolucionária, condenado como barulho, socialmente nocivo. Desde já, o estudante provoca risos.

A universidade conseguiu julgar-se uma potência autônoma na época do capitalismo de livre troca e de seu Estado liberal, que lhe concedia uma certa liberdade marginal. Na realidade, ela dependia essencialmente das necessidades desse tipo de sociedade: fornecer cultura geral apropriada à minoria privilegiada que nela estudava antes de se integrar às fileiras das classe dirigente, da qual havia se ausentado apenas por um breve momento. Daí o ridículo desses professores nostálgicos, amargurados por terem trocado sua antiga função de cães de guarda dos futuros senhores pela função, bem menos nobre, de cães pastores conduzindo, segundo as necessidades planificadas do sistema econômico, levas de “colarinhos brancos” para seus respectivos escritórios e fábricas. São eles que opõem seus arcaísmos à tecnocratização da universidade e continuam imperturbáveis a recitar fragmentos de uma cultura dita geral para futuros especialistas que dela não saberão o que fazer.

Mais sérios e, portanto, mais perigosos são os modernistas de esquerda e da UNE, liderados pelos “ultras”da UJS, que reivindicam uma “reforma da estrutura da universidade”, uma “reinserção da universidade na vida social e econômica”, ou seja, a sua adaptação às necessidades do capitalismo moderno. De fornecedoras da “cultura geral” para uso das classes dirigentes, as diversas faculdades e escolas, ainda ornamentadas de prestígios anacrônicos, são transformadas em centros de criação apressada de pequenos e médios funcionários. Longe de contestar esse processo histórico que subordina diretamente um dos setores relativamente autônomos da vida social às exigências do sistema mercantil, nossos progressistas protestam contra os atrasos e deficiências a que ficam submetidos. São os partidários da futura universidade cibernetizada que já se anuncia aqui e ali. O sistema mercantil e seus servidores modernos: eis o inimigo.

Mas é normal que todo esse debate passe acima da cabeça do estudante, pelo céu de seus mestres, escapando-lhe inteiramente: o conjunto de sua vida e, com mais razão, da vida, escapa-lhe.

Por força da situação econômica de extrema pobreza, o estudante está condenado a um certo modo de sobrevivência pouquíssimo invejável. No entanto, sempre satisfeito consigo, ele erige a sua miséria trivial como um “estilo de vida” original: o miserabilismo e a boemia. Ora, a “boemia”, já longe de ser uma solução original, nunca será autenticamente vivida sem uma ruptura prévia completa e irreversível com o meio universitário. Seus partidários da boemia entre os estudantes (e todos se vangloriam de assim o serem de alguma forma) nada mais fazem a não ser se agarrarem a uma versão artificial e degradada daquilo que não passa, na melhor das hipóteses, de uma medíocre solução individual. São merecedores até mesmo do desprezo das velhas provincianas. Estes “originais” continuam a ter comportamentos erótico-amorosos dos mais tradicionais, reproduzindo as relações gerais da sociedade de classes em suas relações intersexuais. A aptidão do estudante para se tornar um militante de qualquer natureza atesta claramente a sua impotência. Dentro da margem de liberdade individual autorizada pelo espetáculo totalitário, e apesar da sua utilização de tempo, mais ou menos relaxada, os estudante ignora ainda a aventura preterindo-a por um espaço-tempo cotidiano estreito, dirigido em sua intenção pelas barreiras de proteção do mesmo espetáculo.

Ele próprio separa, sem a isso ser obrigado, o trabalho do lazer, enquanto proclama um desprezo hipócrita pelos “burros de carga” e “CDFs”. Ele ratifica todas as separações e em seguida vai gemer em diferentes “círculos” religiosos, esportivos, políticos ou sindicais, sobre o tema da não-comunicação. Ele é tão tolo e infeliz que chega ao cúmulo de se abrir espontaneamente e em massa ao controle parapolicial dos psiquiatras e psicólogos, implementando para seu uso pela vanguarda da opressão moderna; controle este, portanto, aplaudido pelos seus “representantes”, que vêem naturalmente nos Centros de Apoio Psicológico Universitário uma conquista indispensável e merecida.

Mas a miséria real da vida cotidiana estudantil encontra a sua compensação imediata, fantástica, naquilo que é o seu ópio principal: a mercadoria cultural. No espetáculo cultural, o estudante reencontra com naturalidade o seu lugar de discípulo respeitoso. Próximo do local da produção sem nunca a ele ter acesso – o santuário lhe será proibido – o estudante descobre a “cultura pós-moderna” na qualidade de espectador contemplativo. Numa época em que a arte morreu, ele continua sendo o principal fiel dos teatros e cinemas, bem como o mais ávido consumidor de seu cadáver congelado e difundido em celofane nos supermercados para as donas-de-casa da abundância. Ele participa disso sem nenhuma reserva, sem segundas intenções e sem distanciamento algum. Se os shoppings não existissem, o estudante os teria inventado. Ele confirma com perfeição as análises mais banais da sociologia norte-americana do marketing: consumo ostentatório, estabelecimento de uma diferenciação publicitária entre produtos idênticos em nulidade.

E basta que os “deuses” que produzem ou organizam o seu espetáculo entrem em cena, para ele mostrar que é seu público principal, o devoto ideal. Assim, ele assiste em massa às mais obscenas demonstrações de seus “deuses”. Quem mais, além dele, o estudante, lotaria os auditórios quando, por exemplo, sacerdotes de diferentes igrejas vêm expor publicamente seus diálogos intermináveis (semana do pensamento dito marxista, jornadas bolivarianas, semana do empreendedor blue man, working travel slavering experience conference).

Incapaz de sentir paixões reais, ele se delicia com polêmicas sem paixão entre os ícones da ininteligência a respeito de falsos problemas cuja função é disfarçar os verdadeiros: estruturalistas, ortodoxos, regulacionistas, neoclássicos, keynesianos, heterodoxos, pós-modernos, sistema-mundianos, dependentistas, ambientalistas.

Na sua aplicação, ele se considera de vanguarda porque assistiu ao último de Godard, comprou o último livro do Florestan, participou da “revolta da catraca”. Mais ainda se usava uma camisa do Che quando o fez. Ignorante, ele acredita serem novidades “revolucionárias”, garantidas por certificado, as piores versões de antigas pesquisas efetivamente importantes em seu tempo, edulcoradas para uso do mercado. A questão será sempre de preservar seu nível cultural. O estudante orgulha-se de comprar, como todo mundo, as reedições em livro de bolso de uma série de textos importantes e difíceis que a “cultura de massa” dissemina num ritmo acelerado. Só que ele não sabe ler. Ele se contenta em consumi-los com o olhar.

Sua leitura predileta continua sendo a imprensa especializada que rege o consumo delirante dos gadgets culturais. Docilmente ele aceita determinações publicitárias fazendo delas a referência padrão de seus gostos. Ele ainda delicia-se com a Folha, ou então acredita que Carta Capital, cujo estilo já é difícil demais para ele, é realmente uma revista “objetiva” que reflete a atualidade. Para aprofundar seus conhecimentos gerais, ele bebe na Caros Amigos, a revista para quem é de esquerda. É seguindo tais guias que ele acredita participar do mundo moderno e se iniciar na política.

Pois o estudante, mais que qualquer outro, se sente feliz por se considerar politizado. Só que ele ignora que participa disso através do mesmo espetáculo. Assim, ele se reapropria de todos os restos dos frangalhos ridículos de uma esquerda que foi aniquilada há mais de oitenta anos pelo reformismo “socialista” e pela contra-revolução stalinista. Isso ele ainda ignora, ao passo que o poder conhece bem claramente o fato e os trabalhadores têm dele um conhecimento confuso. Ele participa, com um orgulho cretino, das mais irrisórias manifestações que atraem ele próprio. A falsa consciência política é encontrada nele em seu estado mais puro, e o estudante constitui a base ideal para as manipulações fantasmagóricas das organizações moribundas (da UNE à JA e o PSTU). Estas proclamam totalitariamente suas opções políticas. Qualquer desvio ou veleidade de “independência” entra docilmente, após um simulacro de resistência, numa ordem que em momento algum foi colocada em questão. A única unidade entre todas essas pessoas reside na submissão incondicional aos seus mestres.

O estudante acha que deve ter idéias gerais sobre tudo, conceitos coerentes do mundo que dão um sentido à sua necessidade de agitação e de promiscuidade assexuada. Eis porque, manipulados pelas últimas febres das igrejas, ele se precipita sobre a mais velha das velharias para adorar a carcaça fétida de Deus e atar-se às migalhas decompostas das religiões pré-históricas, que ele acredita serem dignas dele e de seu tempo. Não é necessário frisar que o meio estudantil é, juntamente com o das senhoras idosas do interior, o setor onde se mantém o mais alto índice de prática religiosa, conservando-se como uma “terra de missões” ideal (ao passo que, nas demais, os missionários já foram devidamente devorados ou expulsos), na qual padres-estudantes continuam a sodomizar, às claras, milhares de estudantes em suas latrinas espirituais.

Da mesma forma, sua organização semi-libertária e não diretiva corre o risco de, a qualquer momento, por absoluta falta de conteúdo, recair na ideologia da “dinâmica de grupos” ou no mundo fechado das seitas. O consumo de drogas em massa é a expressão de uma miséria real e o protesto contra essa miséria real: é a busca enganosa de liberdade num mundo sem liberdade, a crítica religiosa de um mundo que já superou a religião. Não é por acaso que encontramos sobretudo nos meios beatniks (que é a direita dos jovens revoltados), lares da recusa ideológica e da aceitação das mais fantásticas superstições (zen, espiritismo, misticismo, santo daime e outras podridões como o humanismo ou o ecologismo).

Mas o estudante é um produto da sociedade moderna, tanto quanto Godard e a Coca-Cola. Sua extrema alienação só pode ser contestada pela contestação de toda a sociedade. Esta crítica não pode, de modo algum, ser feita no campo estudantil: o estudante, como tal, arroga-se um pseudo-valor que o impede de tomar consciência do quanto ele é um “despossuído” e, por causa disso, permanece no cúmulo da falsa consciência. A potência do capital atual reside no fato de que ele governa não apenas o mundo que ele produz, mas também os sonhos que as suas vítimas criam para escapar de seu reinado. Esses sonhos de hoje não passam, na realidade, dos pesadelos de amanhã. Pouco importa. O meio estudantil continua sendo seu maior alimentador. Os estudantes têm muito a aprender, com toda certeza, não com os professores, mas com os “marginais das cidades”, cuja lucidez é maior. Com ou sem os estudantes, o sistema dominante continuará a se construir contra todos. Eles podem optar por se tornarem cúmplices de seu próprio infortúnio. Mas devem pelo menos saber que não receberão nenhuma recompensa.

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