05 junho, 2008

Pobreza e miséria: a propósito do filme de Chico Teixeira, A Casa de Alice

Texto dum marxista português radical:


Tive um amigo que distinguia a pobreza e a miséria. A pobreza, dizia ele, resolve-se com dinheiro. A miséria é outra coisa. Pobreza é não ter que comer, viver num barracão esburacado ou dormir no abrigo de uma caixa de multibanco, ter a roupa em farrapos, e com dinheiro compra-se comida, calças e camisa e aluga-se um quarto.

A miséria não se resolve com dinheiro. Miséria é não ser escutado por ninguém, não decidir a própria vida, chegar a casa, olhar para quem lá mora e já não ver neles aquilo que outrora se julgava, viver isolado numa teia de conhecimentos superficiais, amigos de café para discutir o futebol, colegas de trabalho que talvez sejam orelhas do patrão, a miséria é não confiar nos outros nem em si próprio, é viver uma vida sem sentido.

Existe a riqueza, claro, mas essa têm-na os capitalistas e não significa só dinheiro, porque a riqueza representa mais dinheiro do que aquele que é necessário para viver muitíssimo bem. Riqueza significa acima de tudo poder, a capacidade de ordenar as próprias vidas e de mandar nas vidas alheias. Enquanto a miséria significa, mesmo de barriga cheia, não dispor de poder nenhum sobre nada, obedecer e não entender aquilo a que se obedece. A miséria, em suma, é ser joguete da história, sem conseguir travar a engrenagem. A miséria é ter inveja dos patrões em vez de lhes ter ódio, é querer subir no sistema em vez de o derrubar, é desconfiar dos colegas em vez de se unir a eles, é viver isolado sem saber que a história existe e que podemos participar nela. A miséria é dizer sim quando se deve dizer não.

O ideal do capitalismo, o paraíso que ele nos promete, consiste em acabar com a pobreza e universalizar a miséria. Paradoxalmente, o pobre, embora seja um fruto do capitalismo, é nefasto para o capitalismo, porque nem é produtivo nem é consumidor. Ninguém trabalha bem com a barriga vazia, um trabalhador ignorante não pode ser qualificado e além disso quem é pobre não compra nada, o que é péssimo para o mercado. Enquanto o trabalhador condenado à miséria compra o que pode e quando deve, e trabalha tal como lhe mandam. É ele o cidadão exemplar.

Dentro do capitalismo não existe saída para a miséria, porque os trabalhadores só adquirem uma dimensão histórica, só entram na história, quando combatem o capitalismo. É então, na preparação de uma greve − para me limitar a um exemplo simples − na mobilização dos colegas, nas discussões, na formação de um piquete, que os olhos se iluminam e a pessoa sente que alguma coisa mudou. Agora temos a capacidade de falar alto e de obrigar os patrões e as autoridades a escutarem-nos, invertemos a engrenagem, somos história. Saímos da miséria.

João Bernardo - 6 Abril, 2008

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